Dia 9.785.399 da quarentena e hoje a saudade transbordou pelos cantos do peito mais do que os outros dias até escorrer pelos olhos.
Parece que o isolamento nunca mais vai acabar. Eu não aguento mais.
Todos os dias me preocupo com minha avó. Ela me ensinou a fazer meu próprio pão e me dizia para buscar um “diproma”. Não se alfabetizou porque na década de 30 mulher não podia andar a cavalo e eram necessários alguns km a galope para chegar na escola.
Num outro tempo, muito distante, como em dezembro do ano passado, sentávamos na varanda de sua casa, em duas cadeiras, esticávamos nossas pernas cada uma sobre uma banqueta e proseávamos sobre a vida: “Ana Amélia, se eu tivesse ido na escola, não ia chamar Alice, não. Ia ser Doutora Alice! Mas, para estudar tinha que ir de cavalo e meu pai não deixava. De certo rasgava, né?” E gargalhava alto.
Repetiu e repete muitas e muitas vezes essa história, ora brava ora sentida.
D. Alice tem 93 anos, é diabética e grupo de risco do Covid-19. O que mais me aterroriza é saber que a 310 km de distância, caso ela faça a passagem, seja pelo motivo que for, não conseguirei me despedir. Há despedidas? Não sei, mas me faz falta quando não consigo me despedir.
Quando minha avó materna morreu, eu também morava em Campinas, mas gosto de pensar que ela me esperou. Era uma sexta-feira quando minha mãe me ligou e disse “Filha, ela está indo”. Comprei passagem para as 13hs, na época eu ainda não conhecia a dádiva das caronas e dependia de uma viagem de quase seis horas para chegar em Franca. Às 18hs, quando cheguei na rodoviária, pedi à minha mãe que me levasse direto ao hospital, eu queria dizer até logo à minha vó Rosa. No hospital, enquanto passava a mão pelo seu lindo rosto e por seus cabelos, agradeci por ter sido a minha avó.
Dizem que quando a gente morre, vemos um filme de nossa vida. Naquele momento, eu vi o filme da vida que vivi com minha avó.
Aquela mulher doce e forte viveu 89 anos. No quintal de sua casa, tinha uma roseira e muito pequenina eu achava aquilo literalmente muito poético numa época em que nem sabia o que era poesia. Além da roseira tinha sempre café, que a minha avó mesmo moía. Eu me lembro do cheiro do café sendo torrado e moído.
Em Franca, essas duas mulheres que me precederam e geraram meus pais, me possibilitando a vida, sempre moraram na mesma rua, que se bem me lembro foi como meus pais se conheceram. Eu tinha uma rua inteira para brincar com meus inúmeros primos e em cada esquina a casa de uma avó. Eu tive a sorte de transitar livremente pelas duas casas, que estavam sempre cheias. Foi uma infância muito feliz!
Talvez tenha sido nesse transitar que aprendi a amar a rua e as gentes.
Amo um bar e uma padaria e antes do isolamento eram programas rotineiros tomar uma cerveja ou um café com os amigos. Apesar de ter deixado minha cidade natal e me mudado para Campinas em 2012, nunca estive só. Muitos amigos e amores surgiram em minha vida nessa cidade e sou profundamente grata à diversidade de pessoas que Campinas me apresentou. Definitivamente uma segunda família, tão numerosa quanto a primeira.
Marina, minha afilhada de 1 ano e 5 meses e filha de musicista, já tem um imenso repertório de palavras, mas dinda ela ainda não sabe falar, pois já passou um terço de sua vida longe de mim, e são apenas 15 minutos de carro de sua casa até aqui.
Os amigos queridos, a família, as crianças, podemos ver a qualquer hora pela chamada de vídeo do whatsapp, pelo facetime, pelo google meet, por vídeos. Mas e os abraços? E sentar em volta de uma mesa de bar e beber um chopp Ipa no Coliseu? E os cafés eternos na padaria para falar de todos os assuntos do mundo e no fim já nem se lembrar mais do que se falou porque o que importava mesmo não era o assunto, mas o momento?
Eu quero ir para rua. Eu quero ir para casa visitar os meus. Eu quero abraçar meus amigos e seus filhos. Quero ler histórias para minha afilhada e brincar. Quero correr com o Augusto para a Vanessa e o Senna descansarem nem que seja por dez minutos e eu me cansar por uma tarde inteira.
Já é o 9.785.399º dia de isolamento.
Eu não aguento mais.
Acordei e me encontrei com seu texto. Já estamos no 160.360° dia desde a deglutição do Bispo Sardinha. Vamos sobreviver…
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Minha querida Ana Amélia, este é um pensamento, a meu ver, de todos nós.Mas, temos que continuar exercendo a paciência. Beijos
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Eu to de boa sozinha em casa trabalhando pelo pc e sem humanos na minha frente me enchendo
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Eu agradeço por expressar em texto o que estou sentindo. Esse momento nos colocou em contato com muitas emoções.
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E eu agradeço por ler o que sentes no que sinto!
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Ana agradeço por compartilhar seus sentimentos, de uma forma natural e sincera. Ansiedade é algo que me pega também, vamos seguindo. Desde que te conheci senti que temos histórias parecidas, ou não, só sei que a energia de te conhecer é maravilhosa. Sinta-se abraçada!
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Que linda! Recebo seu abraço com muito carinho!! Todas as histórias são parecidas em alguma medida, é o que nos torna humanos. Mas também sinto que nossas histórias de vida têm semelhanças!
Um beijo!
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